Finalmente a Ministra Assunção Cristas apresentou a proposta de Lei de Revisão do Arrendamento Urbano, ou como já muitos lhe chamam a Lei dos Despejos, e infelizmente foi sem surpresa que se verificou que o Governo criou condições para que mais de 100 mil famílias possam perder as suas casas.
Atualmente os contratos de arrendamento das chamadas rendas antigas (pré-Regime de Arrendamento Urbano, RAU) representam, de acordo com os Censos 2011, apenas 33% dos arrendamentos e nos últimos 20 anos o número de famílias com este tipo de contratos desceu de 41% para 255 mil.
O Governo volta assim à fórmula do Governo de Santana Lopes (2004), mas desta vez gritando que não faz mais do que cumprir o Acordo com a Troika, o que mantém o PS à distância e permite à direita liberalizar o mercado de arrendamento, mesmo que isso signifique o despejo de centenas de milhares pessoas, sem que os senhorios façam obras e sem que o Estado tenha meios para ajudar quem ficar na rua.
Esta proposta de lei, que deverá ser aprovada pela maioria parlamentar em tempo recorde até meados de fevereiro, cria um regime de transição acelerado para os contratos pré-RAU e inaugura uma suposta “negociação” entre o senhorio e o inquilino que abre portas a um despejo-simplex.
O prazo mínimo de 5 anos do contrato de arrendamento deixa de existir (por defeito é de 2 anos), o que permite que os proprietários forcem novos contratos e subam as rendas todos os anos.
Se um inquilino ficar 2 meses sem pagar a renda, ou se se atrasar 4 vezes mais de 8 dias durante um ano, pode ser imediatamente despejado, sem que se tenha de ir a tribunal. E se o senhorio quiser fazer obras “profundas” ou se quiser a casa para ir para lá morar basta que informe com dois anos de antecedência o inquilino, que assim pode ficar sem a casa onde sempre viveu.
Mecanismo de negociação
O mecanismo de negociação da renda é a parte mais ideológica e grotesca desta proposta de lei, pois parte do principio que senhorio e inquilino estão em igualdade de circunstâncias para negociar e abre portas aos despejos. Assim, de acordo com a proposta de lei, o senhorio propõe um valor para a nova renda e o inquilino pode contrapropor outro valor. Se chegarem a acordo a renda sobe no mês seguinte; se não, o senhorio pode pagar 60 vezes a média do que ambos propuseram e, se não tiver dinheiro para a indemnização, o contrato altera-se automaticamente para 5 anos e para uma renda máxima que corresponde a 1/15 do valor patrimonial tributário do imóvel (cuja fórmula é ininteligível para o cidadão comum).
Se uma família ganhar menos de €2.450/mês (se pensarmos numa família em que ambos trabalham e cuidam do sogro ou sogra pensionista, ultrapassamos este valor com facilidade), a atualização não é imediata e rege-se pelo limite de1/15 do valor patrimonial tributário do imóvel, subindo no máximo até 25% do total do rendimento da família, o que pode significar aumentos imediatos de mais de 100% logo após a aplicação da lei. E este contrato tem apenas a duração de 5 anos, findos os quais a família pode ir para a rua se a Segurança Social não encontrar meios de ajudar o inquilino.
Este procedimento é semelhante para quem tenha 65 anos ou mais, ou uma deficiência com grau de incapacidade superior a 60%.
No final destes 5 anos, a renda sobe para o valor que o proprietário quiser. Se não chegarem a acordo, caberá à Segurança Social encontrar uma solução para a família, ainda que não o Estado não tenha casas para a habitação social.
Se, no entanto, não houver acordo entre senhorio e inquilino, a proposta de lei prevê um despejo rápido e sem intervenção do tribunal.
Processo de despejo ou despejos-simplex
O NRAU (Novo Regime de Arrendamento Urbano, Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, previa que ninguém poderia ser despejado sem que houvesse uma decisão de um tribunal. No entanto, e ao contrário da prática democrática de que quem decide no caso de um diferendo entre duas pessoas deve ser o tribunal, o Governo cria um Procedimento Extrajudicial que garante despejo garantido em 3 meses.
Assim, se o contrato cessar por atrasos nos pagamentos, se caducar (como acontece no fim dos 5 anos de transição que a lei prevê para os mais pobres e com mais de 65 anos ou com deficiência), se o proprietário quiser a casa de volta (denúncia livre) ou se o proprietário disser que vai fazer obras ou que precisa da casa para a família, o senhorio tem apenas de se dirigir ao Balcão Nacional de Arrendamento.
Este Balcão Nacional de Arrendamento (BNA), que devia chamar-se Balcão dos Despejos, recebe o requerimento do senhorio, notifica o inquilino para deixar a casa e se o arrendatário não contestar o tribunal emite uma autorização de entrada na casa do inquilino e este é despejado por um procedimento meramente administrativo e sem que sejam ouvidas as partes.
Aliás, é muito difícil que o arrendatário possa contestar, visto que para o fazer é obrigado a pagar uma caução, a taxa de justiça e a depositar as rendas vencidas.
É a Lei dos Despejos, feita para os mais fortes
Debaixo da propaganda da reabilitação urbana e da necessidade de incentivar o mercado de arrendamento, a Ministra Assunção Cristas do CDS-PP apresenta uma lei que transfere todas as facilidades e poderes ao lado mais forte da relação: o proprietário.
Existem hoje em Portugal mais de 700 mil fogos desocupados que estão fechados para permitir a especulação imobiliária e em vez de se agir fiscalmente, obrigando a que estes fogos entrem para o mercado de arrendamento e permitindo que mais pessoas possam arrendar, forçando também o valor das rendas, o Governo aponta baterias a 255 mil famílias, na sua maioria pobres e idosos. Esta lei é feita para proteger a especulação imobiliária dos bancos, fortalecer a posição dos proprietários e permitir a desocupação de casas em zonas históricas para a reabilitação de luxo, mesmo se para isso 100 mil famílias tenham de ir para a rua.
O Bloco de Esquerda defende o caminho contrário, é necessário forçar a entrada das 700 mil casas desocupadas no mercado de arrendamento, nomeadamente através da criação de uma bolsa de arrendamento que permita que as pessoas acedam a casas a preços controlados e que, com isso, voltem a ocupar as cidades. Compreendemos ainda os problemas dos chamados “senhorios pobres” que, até por representarem uma pequena parte do total dos proprietários, devem ser apoiados pela Segurança Social, no caso de se verificar que os inquilinos também têm carências económicas.
Estas medidas, em conjunto com um plano de reabilitação urbana que permita melhorar as condições de vida das pessoas e fomentar a criação de emprego, são o caminho de uma alternativa que se opõe aos interesses dos bancos.
Por Ricardo Moreira, dirigente do Bloco de Esquerda e Engenheiro Florestal