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Vidas Hipotecadas

Perante o abuso do sistema financeiro é preciso ter uma lei que proteja a parte mais frágil da relação contratual, os particulares sobre-endividados. Foto de Paulete Matos

Num país que investiu desmesuradamente no imobiliário e empurrou as pessoas para a aquisição de casa própria, não pára de crescer o rácio de incumprimento dos empréstimos à habitação. Este situa-se em níveis historicamente elevados, o que é evidenciado pelo acréscimo da execução de hipotecas e/ou das dações em pagamento.

Só no ano de 2011 foram entregues 6.900 casas aos bancos, mais 18% que no ano anterior, a larga maioria das quais por particulares. Quando mais de 80% do rendimento disponível está encurralado nas dívidas à habitação (ver gráfico 1), percebem-se as dificuldades cada vez maiores com o “aumento continuado do desemprego e redução acentuada do rendimento disponível das famílias”, diz o próprio Banco de Portugal.

É nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto que se concentraram 45,2% dos imóveis entregues aos bancos, encabeçados pelos municípios de Vila Nova de Gaia, Sintra, Alcochete e Lisboa.

Ao contrário do que seria de esperar, com o despejo e entrega das casas aos bancos não fica automaticamente liquidada a dívida. Existirão, certamente, muitos milhares de pessoas que perderam as suas casas porque não as conseguem pagar e, mesmo assim, continuam a ter uma dívida ao banco. Isto porque com a entrega da casa, os bancos procedem a uma reavaliação do imóvel que, em regra, é inferior à que foi feita no momento da aquisição, obrigando os particulares a suportar uma dívida correspondente à diferença entre o valor da casa à data de entrega e o crédito ainda em dívida. Ou seja, não é só a habitação que fica para os bancos, é também a vida das pessoas.

Esta dívida sobre quem perdeu a sua habitação é imoral. Não só atinge quem está fragilizado financeiramente, como esquece que o pagamento dos empréstimos inclui o pagamento de juros espreads que cobrem, entre outros, o risco do concedente, cujo valor chega a ser frequentemente superior à da amortização do imóvel (ver gráfico 2). Além disso, quem faz a reavaliação dos imóveis não é mais do que quem beneficia com a desvalorização, sendo evidente o conflito de interesses.

Ora, esta é a prática dos bancos que está a ser contestada nos tribunais e já resultou em pelo menos sete decisões judiciais de primeira instância (quatro na Madeira e três no Continente) que atestam que com a entrega da casa fica liquidada a dívida, à semelhança do que se tem passado nos tribunais no Estado Espanhol. No entanto, estas decisões são feitas caso a caso e não fazem jurisprudência, o que significa que os bancos estão a interpor recursos e a arrastar para o infinito estas decisões, prejudicando quem está já numa situação de sobre-endividamento e, por isso, teve de abandonar a sua casa.

Torna-se necessário e urgente uma lei que proteja as pessoas e não o sistema financeiro que, recordemos, despoletou a crise financeira e tem desde então especulado com a dívida pública, prejudicando a economia e a vida das pessoas, além de continuar a receber milhões de dinheiros públicos.

Esta lei deve, pelo menos: 1) introduzir uma moratória aos despejos das pessoas hipotecadas até que se encontre uma solução para a sua situação, garantindo que ninguém fica sem alternativa de habitação e assegurando o acesso a justiça gratuita para fazer face a processos de execução; 2) regular a dação de pagamento de modo a que se o banco executa a hipoteca e fica com a habitação então a dívida fica automaticamente liquidada; 3) prever o arrendamento a preços sociais das casas hipotecadas, permitindo aí a permanência dos particulares e garantindo-lhes direitos especiais.

Perante o abuso do sistema financeiro é preciso ter uma lei que proteja a parte mais frágil da relação contratual, os particulares sobre-endividados. E dar visibilidade às vidas hipotecadas é o primeiro passo para travar a injustiça: enquanto cidadã/os devemos ser solidários com quem está perante uma execução de hipoteca e tentar travar os despejos imorais. Ninguém deve ser privado de uma habitação digna, como está expresso na Constituição, nem ninguém deve ter a sua vida hipotecada por uma dívida abusiva.

Por Rita Calvário, dirigente do Bloco de Esquerda e Engenheira Agrónoma