Share |

Quando o coração também é razão

Lisboa ainda é muito coração onde o coração encontra um lugar para bater descompassadamente, onde a emoção se sobrepõe ao formalismo urbanista, onde viver é mais que dormir, onde as ruas são o corredor exterior das casas. Nessa Lisboa que resiste tenazmente ao chega-para-lá dos arranha-céus, das vias rápidas, dos centros comerciais sugadores da imaginação colectiva, do vazio que matou a rua tradicional, ainda vive a brincadeira de passeio, o jogo improvisado, o riso de crianças emoldurado pela conversa de vizinhos. Mas é uma Lisboa confinada, como se de gueto se tratasse, cercada por muros psicológicos, por atracções consumistas, esquecida no espaço e no tempo que a fez.

Passeando pela cidade observamos a solidão frequente de prédios entristecidos, a sua beleza decadente ofuscada por torres brilhantes. Constata-se facilmente o fim a que estão votados muitos dos edifícios nesse estado deprimente, a ruína final, a prisão perpétua no fundo imobiliário ou a recuperação para elites, fim para o qual não foram criados. Prédios que reclamam gente, vida, crianças, alegria, casas que anseiam pelo calor de ocupantes felizes, que desejam a proximidade e o rebuliço bairrista.

Essa Lisboa que é muito coração resiste com valentia, mesmo contra as probabilidades de que está desprovida. A Lisboa que aprendemos a amar, a Lisboa que muitos tiveram que abandonar para se somar aos imensos quarteirões zombie das periferias e arredores. Essa mesma cidade de que sentimos saudade, que nos puxa e empurra simultaneamente, porque é bela e triste num mesmo tempo, é a cidade do coração que é razão, porque a razão também nos sussurra que essa cidade fantasma seria bem mais bonita se habitada. Mais segura, mais limpa, mais apetecida, muito mais viva, numa sucessão de “mais” que são razão muito acima de suficiente para a sua recuperação. Razão que mora na tipicidade, no bem-estar, no acolhedor que o turista procura, na leitaria tradicional, no manjerico empoleirado na janela, no gato que boceja satisfeito, na memória colectiva de um espaço para se crescer harmoniosamente e envelhecer com tranquilidade.

Essa Lisboa é muito coração, é emoção sem limites, mas também é razão.
Razão para a felicidade, razão para a identidade, razão para a reabilitação de um passado que deve ser presente!